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Crise da legalidade

por Miguel Reale em 5/24/2021

Crise da legalidade

A súbita deposição do trêfego presidente venezuelano, Hugo Chávez, por forças militares, seguida de seu imediato e inesperado retorno ao poder, como exigência do clamor público, constitui um episódio que deve ficar na História do Direito como uma lição magnífica de ruptura da legalidade.

A obediência à lei é o supedâneo primordial da democracia, a qual repousa sobre dois pilares expressamente proclamados pelo nunca assaz louvado artigo 5.º da Constituição de 1988: o de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" e o de que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Isto quer dizer que, no regime democrático, só obriga um fim consagrado por lei, desde que o meio empregado para estabelecê-la corresponda a processo também previsto em lei. É a luz desses dois princípios conjugados que podemos compreender o que seja Estado Democrático de Direito, cuja legitimidade se confunde com a das normas legais instituídas objetivamente em função dos valores éticos fundamentais, sem os quais a democracia não subsiste.

A legalidade, por conseguinte, não se reduz a mero comando expresso pelos "donos do poder", o que não foi obedecido pelo Congresso venezuelano ao conferir, servilmente, ao presidente Chávez "poderes legislativos discricionários" constantes da chamada Lei Habilitante, fonte primeira de todos os abusos por ele praticados e que importaram na sua desastrada e transitória destituição.

Estamos, por conseguinte, perante três ordens de fatos interligados que explicam o que ocorreu na Venezuela: primeiro, uma incrível abdicação parlamentar a favor de um governante armado de poderes ilimitados de que iria grotescamente abusar; ao depois, a reação cívico-militar contra esse lastimável estado de coisas, seguida pela nomeação irregular de um "presidente provisório", cuja decisão preliminar foi, inexplicavelmente, extinguir o Congresso e o Supremo Tribunal de Justiça, sem incontinenti convocar o eleitorado para novas eleições presidenciais.

Houve, pois, uma série de atos ilegais, cujo desfecho final foi a volta de Chávez, já agora, ao que parece, como "presidente arrependido", disposto a substituir sua "pseudo-aventura bolivariana" por um governo democrático, respeitadas e ouvidas as vozes políticas divergentes, como é próprio da democracia.

Dir-se-á que a História está cheia de exemplos de "rupturas da legalidade", quando se chega ao ponto extremo de desrespeito à ordem jurídica constituída, impondo-se a opção por uma nova fase constitucional. Mas, embora tal fato seja inegável, tudo deve ser feito para salvaguardar a linha de continuidade legal inerente ao Estado Democrático de Direito.

Lembremos o que ocorreu no Brasil em 1964, quando se tornou manifesto o propósito do presidente João Goulart de instaurar no País um regime comunista ou filocomunista, justificando, desse modo, o processo revolucionário ou, se quiserem, contra-revolucionário de seu afastamento.

A meu ver, era legítimo alijar o chefe de governo de então, e não me arrependo de, como secretário de Justiça do Estado de São Paulo, ter agido nesse sentido. Confesso, todavia, que a implantação de um regime militar, que iria durar nada menos que 20 anos, estava bem longe de minhas intenções.

Até o último momento, pensei que se iria convocar, em substituição ao presidente deposto, o presidente da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, sendo justo lembrar que era esse também o ponto de vista do governador Adhemar de Barros, assim como de Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda e demais líderes que atuavam no cenário político do País.

Infelizmente, optou-se por um "sistema militar" mediante a promulgação de um ato institucional que conferia ao chefe da Nação poderes ditatoriais, muito embora se declarasse ainda em vigor a Constituição de 1946. O único imperativo constituciona Autor(es)

Miguel Reale