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Desvios da História no Brasil

Desvios da História no Brasil

Um dos problemas mais intrincados da História, objeto de estudo tanto de filósofos como de historiadores, consiste em saber se há uma linha de continuidade no desenvolvimento dos atos humanos ou se, ao contrário, sofrem eles interferências e desvios de toda espécie, uns devido a fatos naturais, como, por exemplo, um terremoto, outros em razão de acontecimentos históricos imprevisíveis.

Talvez o primeiro pensador a meditar profundamente sobre tal problema tenha sido Nicolau Maquiavel, quando, no início do século 16, procurou enunciar, de maneira objetiva, as razões determinantes do êxito dos grandes líderes políticos ou militares. No seu admirável livro Il Principe, com o qual se costuma datar o aparecimento da Política como ciência positiva, entende ele que a conquista e a conservação do poder dependem da junção de dois fatores, o engenho ou capacidade pessoal do agente, que ele denominava virtù (virtude), e a fortuna, o acaso, aproveitado por aquele para impor a sua vontade.

Já o grande biólogo Jacques Monod, em seu famoso livro Le Hasard et la Necessité (O Acaso e a Necessidade), publicado em 1971, amplia o problema, convertendo o acaso num valor constante e determinante, sem o qual seria impossível explicar o advento da vida e da cultura.

Embora se possa discordar dessa universalização do fortuito ou ocasional, parece-me incontestável que estamos sujeitos à ocorrência de fatos imprevistos que vêm dar novo sentido à existência dos indivíduos e dos povos. A história brasileira apresenta-nos magníficos exemplos nesse sentido.

Durante longo tempo se sustentou que a descoberta do Brasil pelos portugueses teria sido obra do acaso, mas, hoje em dia, prevalece a tese de que os reis de Portugal havia muito tempo tinham conhecimento de terras nessa latitude do Oceano Atlântico, mas o mantinham em segredo, temerosos da concorrência dos poderosos soberanos da Espanha. Assim sendo, quando Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias e contornando a África, fez um desvio de rota, fê-lo intencionalmente, dando início à posse pública de novos territórios.

O fato, porém, inesperado por excelência na história pátria foi a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, na primeira década do século 19, tendo como conseqüência a transladação da Corte Imperial de Lisboa para o Rio de Janeiro, com repentina alteração no processo de nossa independência nacional.

Ao contrário do que mostra aos telespectadores essa inominável e ridícula pornochanchada que a TV Globo explora sob o título de O Quinto dos Infernos - com condenável deturpação de nossos mais altos valores históricos -, a elevação do Brasil à categoria de centro do imenso Império Português constituiu um fato decisivo em nossa emancipação política.

Não é meu propósito, no presente artigo, traçar o retrato fiel de dom João VI, pois ele, consoante o demonstram nossos grandes historiadores, desde a obra clássica de Oliveira Lima, longe de ser a figura ridícula traçada pela citada minisérie televisiva, foi, apesar de inegáveis vacilações, um monarca com plena consciência do momento histórico que estava vivendo, percebendo que, não sendo vencedora a idéia de um novo império com sede no Rio de Janeiro, só restava preservar o ideal monárquico num Brasil independente, para sorte nossa, pois, se não tivesse sido adotado esse regime, teria sido bem mais difícil salvaguardar a unidade nacional, como o fazem ver os vários surtos revolucionários que atormentaram o primeiro e o segundo reinados, com a instauração de várias republiquetas, tal como se deu no mundo castelhano.

Não deixou de ser também obra do acaso o que aconteceu em 31 de março de 1964, quando o general Olympio Mourão Filho, como comandante da Região Militar de Juiz de Fora, resolveu, em conexão com o então governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, dar início à operação militar que, em poucos dias, iria liquidar o jactancioso momento sindical populista do presi Autor(es)

Miguel Reale