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Repensando conceitos

por Flávio de Andrade em 5/24/2021

Repensando conceitos

Quando os tempos mudam, mudam-se os valores. A tragédia que se abateu sobre Nova York corresponde a um salto no tempo: ao desmoronarem, as duas torres do World Trade Center despertaram o mundo para o terceiro milênio, e isso impõe profundas reflexões sobre o século que passou, principalmente em seus anos mais recentes.

O século que pretendia ser o da liberdade pessoal, com a expansão dos sistemas democráticos, transformou-se no tempo de pesada coerção sobre o indivíduo. Em nenhuma outra época o homem teve a sua esfera de decisões pessoais tão contraída pela pressão de grupos de interesses de diversos matizes. Ao enfraquecimento das instituições políticas clássicas, que conformavam o Estado, se contrapuseram associações de caráter híbrido.

Surgem novos dogmas: ninguém será perfeito se não pensar como eu penso, se não agir como eu ajo, se não acreditar naquilo em que acredito. Trata-se de outras "Inquisições", que se esparramam sobre o mundo como os grupos de Torquemada, denunciando os diferentes, para impor-lhes as próprias idéias, como se essas idéias a ser impostas fossem a incontestável e única verdade.

A ortodoxia que professam é a ortodoxia da opressão contra a liberdade.

A partir da velha consideração de que só temos uma vida e, pelo menos em tese, deveremos ter jurisdição sobre a nossa própria vida, seria absolutamente necessário que essa liberdade de decidir sobre nós mesmos não fosse assumida por ninguém. Dá-se por descontado que a liberdade que deveríamos ter em cada um de nós tem o seu limite em nós mesmos, no corpo e na alma, em nossos bens legítimos, em nosso próprio futuro.

Fora disso, e com fronteiras definidas pela realidade, a liberdade se insere no quadro das responsabilidades sociais, como membros de uma família, habitantes de uma cidade, cidadãos de um país. Essas responsabilidades coletivas, aceitas e definidas pelos pactos de usos e costumes políticos, não podem legitimar-se se não respeitarem aquela liberdade essencial de cada um, sem a qual os homens deixam de ser senhores de sua vida e passam a ser escravos de todo. Não há liberdade coletiva se não houver liberdade individual. Uma característica imutável dos sistemas totalitários é a opressão que um todo fictício exerce sobre as partes reais. Ao optar por um sistema totalitário, até mesmo o ditador passa a ser seu escravo e, em muitos casos, sua vítima final, como há tantos exemplos. Um dos casos mais recentes foi o do romeno Ceausescu.

A liberdade do homem é a liberdade de seu corpo, sem o qual ele não existe.

Como na fórmula clássica de Lucrécio, em De Rerum Natura, assim como não há peixes sem água nem árvores sem terra, não há alma se não houver, com seu sangue, seus músculos, seus nervos, corpo que a contenha. Talvez os criadores da doutrina jurídica do habeas-corpus, ao defenderem o direito de ir e vir das pessoas, pensassem um pouco adiante (o que seria natural): na total liberdade do corpo, que, num mundo justo, deveria submeter-se apenas à vontade da mente e ao respeito ao outro.

Há muitas formas de aprisionar as pessoas, aprisionando o seu corpo, além das prisões clássicas: pelos preconceitos, pelo fanatismo, pelas falsas noções de beleza e eugenia, que pretendem fazer do corpo vitrine aparentemente iluminada, a fim de esconder, tantas vezes, almas pequenas e tristes. Há muitas formas de "malhar" um corpo e, ao "malhá-lo", fustigar o espírito: com dietas torturadoras (que muitas vezes, depois de algum êxito, são denunciadas como prejudiciais) e com a privação dos modestos prazeres que aliviam a carga do trabalho e as vicissitudes da vida.

Evitamos pensar em que a vida é uma só e não usufruímos de cada dia as suas horas e de cada hora os seus minutos com essa consciência de que tudo é precário. De vez em quando, o mundo leva o seu susto e as pessoas mais conscientes passam a ter maior apreço à vida e àquelas coisas aparentemente pequenas que a nossa soberba Autor(es)

Flávio de Andrade