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RETORNO À BÁRBARIE "UMA AMEAÇA Imperativos que ora se impõem

por Miguel Reale em 5/14/2021

RETORNO À BÁRBARIE "UMA AMEAÇA Imperativos que ora se impõem

É toda uma herança histórico-cultural de três milênios que está em causa.

Miguel Reale

Decorrido mais de um mês após a hecatombe que martirizou os Estados Unidos da América, talvez já se possam analisar seus efeitos sobre a cultura, tomada esta palavra em seu sentido estrito, como conjunto de conhecimentos indispensáveis à plena fruição dos valores mais altos atingidos pelo engenho humano.

Não há dúvida que não foi só no plano da economia e da política, notadamente da política internacional, que repercutiram poderosamente as ações terroristas do infausto dia 11 de setembro próximo passado, mas em todos os domínios das ciências, das letras e das artes, dando nova configuração ao pensamento universal e exigindo cautelosas atitudes nesta hora tão preocupante.

Pode-se dizer que, antes do terrível ato de terror, estávamos vivendo uma fase marcada pelo desejo de composição de valores, em escala planetária, propiciada pelos meios de comunicação, que atuam normalmente de maneira pacífica e sincrônica. Nesse sentido, cheguei a sustentar, em meu livro O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, que seria mais adequado falar em "convergência das ideologias", visto estar prevalecendo o intercâmbio das idéias sobre tomadas de posição de caráter isolado, nacional ou regional.

Pois bem, é essa visão otimista que, devido a um acontecimento de poucas horas, rui por terra, percebendo-se que a sociedade universal está dilacerada, como que rachada ao meio, sendo atingidos em cheio os seus valores fundantes.

É toda uma herança histórico-cultural de três milênios que está em causa, com um majestoso patrimônio conquistado no mundo da sensibilidade, com projeção estupenda no domínio das letras e das artes; da intelectualidade e suas realizações no campo das ciências e da técnica; e da capacidade volitiva empenhada numa obra de natureza econômica e política, visando a realizar um ordenamento social mais eqüitativo, benéfico para o maior número possível de seres humanos.

O que nos ameaça é o retorno à barbárie, ao sacrifício de uma tábua de valores que tem em sua base o da pessoa humana e do que ela representa como afirmação e desenvolvimento do espírito, o qual se vale dos conhecimentos alcançados para garantia de uma existência individual e coletiva condigna, cada vez mais caracterizada pelos bens inalienáveis da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Ante um quadro dessa natureza, a primeira reação dos homens cultos só pode ser no sentido da preservação dos bens fundamentais, do que chamamos de civilização, fruto de incontáveis sacrifícios, de um sem-número de fracassos e vítórias, de êxitos e decepções, com perda de milhões de vidas nos conflitos de toda espécie, que, com idas e vindas, insurgências e recorrências, têm amargurado a nossa vida no "mísero planeta" a que se refere Dante, ao iniciar a sua inesquecível trajetória através do inferno e do purgatório, em busca do paraíso.

É a renovada tentativa de alcançar os bens supremos que está agora em jogo, não se compreendendo que alguém, com alguma cultura, possa ainda sustentar idéias e teorias desprovidas de raízes no passado, optando por soluções pretensiosamente desconstrucionistas e efêmeras, como as pregadas pelos que se vangloriam de ser "pós-modernos". Não creio, em suma, que tenha razão o filósofo italiano Mario Perniola quando afirma que "a ausência de um enraizamento que configura uma identidade não é mais percebido como uma falta a ser preenchida". Ao contrário, nunca como agora se impõe a preservação de nossas raízes culturais.

Não se julgue que eu peque por misoneísmo, ou seja, por aversão a tudo quanto é novo, pois o simples fato de considerar de natureza histórica os valores fundamentais que denomino invariantes axiológicas demonstra meu respeito às inovações, ma