Nosso Conteúdo

Artigos

Voltar

Sobre uma passagem dos Cânticos dos Cânticos

Sobre uma passagem dos Cânticos dos Cânticos

(Colaboração do Prof. Dr. Jacy de Souza Mendonça, da PUC-SP )

Meus caros amigos

Para começar nós ouviremos um disco que foi gravado na abadia de Getsêmani, onde Thomas Merton se queda enclausurado entre as quatro paredes de sua liberdade. E o trecho que vamos tocar foi tirado de um versículo do Cântico dos Cânticos, onde a Sulamita ouve em sonho a voz do bem amado:

"Ego dormio cor meum vigilat vox dilecti mihi pulsantis. Aperi mihi, soror mea, amica mea. Vulnerasti cor meum, cor meum, vulnerasti cor meum . Aperi mihi, soror mea, amica, columba mea, immaculata mea. Gloria Patri et Filio et Spiritu Sancto. Aperi mihi, soror mea, amica mea, columba mea, immaculata mea".

Ouvimos o Cântico dos Cânticos, o mais belo dos Cânticos, o Cântico do amor divino, com as cores e as palavras do amor humano. Com uma divina ousadia, o espírito inspirador começa este Cântico com as coloridas e quentes palavras humanas: "Dá-me o beijo de tua boca, porque os teus peitos são melhores que o vinho". E com este tom, com este colorido, o Cântico de amor divino ensinará aos homens de todos os tempos a riqueza do ser a bondade intrínseca das coisas, a bondade mesma da carne humana, que o pecado aflige, mas que intrinsecamente é boa. Vive, cordial contra o maniqueísmo, o pessimismo sombrio, que tantas vezes se tem atravessado no caminho da Igreja, com maléfica heresia, e que, freqüentemente, sem tomar forma de heresia nítida, vive um pouco no nosso pensamento, quando pela obsessão do sexto mandamento, nos inclinamos um pouco a pensar que a carne humana é má. Contra esse sombrio pessimismo, o Cântico dos Cânticos é um tônico, um cordial para vivificar a bondade intrínseca das criaturas, a bondade do ser. E com isso, com essa audácia que só a Deus é permitida, o mais espiritual dos amores se reveste deste colorido, tem esta tonalidade; e abre sua música, o seu cântico, com cálidas palavras do amor humano, do amor carnal: "Dá-me o beijo de tua boca, porque os teus peitos são melhores que o vinho". Cântico de apaixonado.

Neste trecho que ouvimos, neste pequeno versículo que o canto gregoriano repetiu três vezes, com uma pequena interpolação, ouvimos o chamado impaciente do esposo, batendo à porta da bela adormecida, sim, mas coração vigilante. Ora, quem não desejou, quem de nós não deseja e não desejará ardentemente ouvir ou ter o direito de dizer essas palavras de amor? Em todos os tempos carregam este sonho de brancura radiante, de infinita possibilidade dentro dos limites da vida. Nós bem sentimos, ai de nós, a composição de glória e de miséria que temos em nós, que todos carregam, uns com tristeza, outros com circunspecção e vanglória. Bem sabemos que o homem é mentiroso e versátil, inquieto, e que as melhores palavras de verdade sempre incluem algo de falso e que os mais admiráveis amores são forjados de amor próprio. Bem, sabemos, ai de nós, que aí está a desordem política, a desordem econômica, a desordem moral. Bem sabemos que a cupidez se casa com a dedicação, que o egoísmo se casa com a generosidade. Bem, sabemos, ai de nós, que o olhar translúcido da criança vai toldar-se de lágrimas, não mais de lágrimas de criança, ou vai escurecer de inveja e de rancor, porque nós também fomos assim, brancos, limpos, dessa brancura física das crianças. Nós, que hoje colaboramos para tornar inóspito o planeta; nós que contribuímos para a miséria e desordem, mesmo, ai de nós, quando pregamos ou quando pretendemos trabalhar para a limpeza do mundo. Falta-nos a plenitude da brancura, a plenitude do ser.

A quem diremos, ou de quem ouviremos, então, aquelas palavras com amor e verdade? Direis, talvez, "Soror mea", àquelas almas irmanadas na aflição. O título de irmã será então parentesco de miséria. Direis "amica mea", dentro da relatividade dos afetos, que são muletas para os estropiados da vida ou pomada para os contundidos do amor.

Dias atrás, passando por uma rua escura, vi, Autor(es)

Conferência do Dr. Gustavo Corção, PUC-RS, Julho de 1953