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Direitos empatados. Steven Wise não encanta cães: advoga por eles.

Direitos empatados.

Steven Wise não encanta cães: advoga por eles. Também advoga por gatos, chimpanzés, bonobos, gorilas, golfinhos, elefantes, porcos, papagaios e polvos, cuja consciência já está sabidamente comprovada em pesquisas. Sua luta nesta vida é elevar o status desses bichos na cadeia de direitos. Faz isso há 30 anos, nas cortes e nos bastidores, ao professar aulas nas faculdades de direito de Harvard, Vermont, Miami, John Marshall e Lewis & Clark, e na medicina veterinária da Tufts, em Massachusetts. Convidado assíduo de programas de TV, palestrante em variados ecossistemas e culturas, ele ainda pilota o projeto Direitos dos Não Humanos, organização baseada na Flórida. A missão da organização se mimetiza com a sua: mudar a condição legal de pelo menos algumas espécies não humanas, tirando-as do limbo de meras “coisas”. “Um ser somente tem direitos se for humano. Isso é fruto de uma história repleta de ignorância. Quais foram as razões pelas quais nos demos tantos direitos?”, questiona.

Assumidamente influenciado pelo livro Libertação Animal, do bioeticista australiano Peter Singer, que ele leu ainda na primeira edição, de 1975, Wise também lançou os seus: Rattling the Cage – Toward Legal Rights for Animals (2000), Drawing the Line – Science and the Case for Animal Rights (2003), Though the Heavens May Fall – The Landmark Trial that Led to the End of Human Slavery (2005), e An American Trilogy – Death, Slavery, and Dominion Along the Banks of the Cape Fear River (2009). Hoje trabalha no quinto, um livro de memória do projeto Direitos dos Não Humanos.

A entrevista com Wise foi feita numa semana em que reverberou o furto de 178 beagles do Instituto Royal, em São Roque, e se noticiou rapidamente a filmagem clandestina de porcos sendo operados numa aula de medicina da PUC-Campinas. Nos dois casos, as instituições se disseram fiéis à lei como está. Ainda assim, a Anvisa decidiu analisar a legislação que trata do uso de cobaias, e a Câmara dos Deputados acelerou a votação de um projeto de lei que tipifica como crime todos os atos contra a vida, saúde ou integridade mental e física de cães e gatos.

Efeitos colaterais do olhar terno dos beagles? Reação alérgica depois de mais uma leva de manifestações? Talvez. No campo das pesquisas, algumas mudanças trabalham no campo da ação e reação, e muitas estão permeadas de contradições. Wise lembra que faz apenas 60 anos desde que os homens decidiram não fazer testes em outros seres humanos sem o termo de consentimento. Ele mesmo toma, quando necessário, remédios que envolveram pesquisas com cobaias – e se justifica dizendo não aceitar isso passivamente. O que deixa seus nervos à flor da pele é a lerdeza de um processo que, nas suas contas, já era para estar em outro estágio: “Alguns cientistas deveriam emergir do século 20 e começar a fazer pesquisa médica do século 21”.

Depois do sequestro de 178 beagles de um laboratório brasileiro na semana passada, um dos cientistas disse ser impossível não usar animais em pesquisas. Também afirmou que o sequestro teria afetado um grande estudo sobre o câncer. É possível fazer pesquisa de ponta sem o uso de cobaias animais?

Steven Wise - Esse cientista está errado. Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH, em inglês, ligados ao Departamento de Saúde) concluíram recentemente que todas, ou quase todas, as pesquisas que usam chimpanzés como cobaias são “desnecessárias”. De forma mais ampla, o último ex-diretor-geral do NHI, Elias Zerhouni, afirmou em junho de 2003 que “nós nos afastamos do estudo das doenças humanas feitas em humanos. Embarcamos todos nessa, eu inclusive… A verdade é que (a pesquisa animal) não funcionou, e é hora de pararmos de dançar em torno do problema… Precisamos nos reorientar e adaptar novas metodologias para uso em humanos a fim de entender a biologia da doença em seres humanos”. Esse cientista que você menciona e outros deveriam emergir do século 20 e começar a fazer pesquisa médica do século 21.

Podemos fazer pesquisa científica com animais sem que isso implique abuso?

Steven Wise - Há um milhão de espécies de animais não humanos, com graus extremamente variáveis de consciência, sensibilidade e outras habilidades cognitivas complexas, e um número infinito de maneiras de conduzir a pesquisa. Pode-se fazer uma pesquisa com baratas sem abusar delas? Provavelmente, sim. Pode-se fazer uma pesquisa usando mamíferos em cativeiro sem abusar deles? Provavelmente, não.

Por que estender direitos humanos a alguns animais?

Steven Wise - O projeto Direitos dos Não Humanos não quer estender “direitos humanos” a animais não humanos. Os direitos do homem são para homens. Os direitos do chimpanzé são para chimpanzés. Os direitos do elefante são para elefantes. Os direitos do golfinho são para golfinhos. Alguns animais não humanos devem ter direito a personalidade jurídica (a capacidade de ter quaisquer direitos legais), pelas mesmas razões que seres humanos têm direito a tal. E esses animais devem ter acesso a direitos que protejam seus interesses fundamentais.

Quais seriam esses direitos?

Steven Wise - Existe um número infinito de direitos possíveis para um animal humano e para um não humano. Devemos começar, como disse anteriormente, por reconhecer que pelo menos alguns animais não humanos têm direito a personalidade jurídica, o que lhes dá a capacidade de ter qualquer direito legal. Em seguida, devemos reconhecê-los como detentores de direito a liberdade corporal e a integridade física. O projeto Direitos dos Não Humanos começará inclusive a litigar a personalidade jurídica e os direitos jurídicos fundamentais das quatro sociedades de grandes primatas, dos cetáceos (baleias e golfinhos) e dos elefantes, já que essas espécies têm sido minuciosamente estudadas e demonstram habilidades cognitivas complexas.

Estudos que provam que alguns animais compartilham com os humanos a capacidade de perceber-se, sentir e sofrer vai mudar a maneira como nos relacionamos com eles?

Steven Wise - É a ideia. Nossa organização, por exemplo, só se baseia em evidências científicas. Vamos apresentar nossa primeira ação judicial em nome de um chimpanzé ainda neste ano. Ela será apoiada por depoimentos de cerca de uma dúzia de líderes primatologistas de todo o mundo, que vão discutir dezenas, talvez centenas de estudos que demonstram que os chimpanzés possuem um número grande e variável de habilidades cognitivas complexas.

Qual será essa ação judicial?

Steven Wise - Será a exigência de reconhecimento de um animal não humano como um “ente legal”, portanto, contemplado por direitos legais. É um pedido de habeas corpus, que está relacionado de alguma forma a habeas corpus civis públicos ajuizados no Brasil, um em nome de uma chimpanzé chamada Suíça, na Bahia, e outro em nome de um chimpanzé chamado Jimmy, em São Paulo. (O habeas corpus para Suíça defendia sua transferência do Zoológico de Salvador para um santuário de primatas em Sorocaba, mas ela morreu sem que o mérito fosse julgado; o Tribunal de Justiça do Rio negou o habeas corpus da transferência de Jimmy de Niterói para o mesmo santuário.)

Para o senhor, faz diferença, moralmente falando, se a pesquisa com cobaias visa a obter novas drogas para salvar humanos, e não novos cosméticos?

Steven Wise - Não, moralmente isso não faz diferença.

O comitê de ética em pesquisa no Brasil não endossa medicamentos que não sejam submetidos a testes de segurança em animais. O que o comitê de ética americano diz a esse respeito?

Steven Wise - Essas decisões não são tomadas por esses comitês nos Estados Unidos. O NHI em pouco tempo deixarão de investir em pesquisas usando chimpanzés, e a FDA (Food and Drug Administration) está trabalhando para reduzir e eliminar gradualmente a pesquisa com animais não humanos. Testes de segurança que cruzam espécies geralmente não são eficazes.

O senhor seria voluntário em uma pesquisa em que não foram feitos testes prévios em animais, e cujos efeitos colaterais são desconhecidos?

Steven Wise - Certamente. O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 2013 Autor(es)

Steven Wise