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Segurança Jurídica e Jurisprudência - Um enfoque filosófico jurídico

Segurança Jurídica e Jurisprudência - Um enfoque filosófico jurídico

Autor: Carlos Aurélio Mota de Souza | Editora: Ltr | Data: 5/11/2021

Prefácio

Carlos Aurélio, com seu livro sobre a Segurança Jurídica e Jurisprudência, preenche vácuo da literatura brasileira sobre a importância da certeza do direito, apenas possível à luz da relação conflitual exposta ao Judiciário e sua manifestação definitiva. Lastreado em sólida e atualizada doutrina, assim como examinando a evolução histórica da prudência jurisdicional desde tempos pretéritos, com percuciente análise do período romano e das peculiaridades do direito saxão, Carlos Aurélio realça a importância maior, no processo normativo, que o Poder Judiciário exerce ao ofertar a "certeza" da decisão à "segurança" exposta na lei. A dificuldade de se obter clareza absoluta na lei, que evitaria conflitos, não permite ao legislador senão dar a "segurança" ao Direito, mas apenas ao Judiciário é outorgado oferendar ao direito a "certeza" definitiva. Ressalta, também, o eminente autor, a necessidade de graduar a passagem da "certeza" individual para a "certeza" coletiva, aquela, vinculada a decisões para casos concretos, que podem influenciar outras sem constituir-se em jurisprudência, e esta, voltada para jurisprudência, que nas súmulas encontra seu momento maior, ao simplificar, por solução antecipada, o papel das instâncias inferiores, com concomitante redução de sua carga de trabalho, sobre orientar, com maior amplidão, eventuais partes litigantes sobre o sucesso de suas pretensões. Defende, pois, o efeito vinculante e a eficácia erga omnes das súmulas, concluindo, à luz de sua concepção jus naturalista, que a "justiça" do Direito depende da "certeza" que as decisões finais ofertam, sendo sempre "justa" a "certeza" do Direito ofertada pelo Poder Judiciário. O brilhantismo da tese, mereceu da Banca Examinadora de seu concurso de livre docência para a Faculdade de Direito da UNESP, a nota 10 dos cinco examinadores, a saber: João Grandino Rodas, Christiano José de Andrade, Hermínio Alberto Marques Porto, Rui Geraldo Camargo Viana e Ives Gandra da Silva Martins, prova inequívoca de seus méritos. Pessoalmente, nada obstante jus naturalista como o autor e reconhecer, no Poder Judiciário, relevância maior do que a dos outros

poderes, por ser um poder técnico, contraposto aos Poderes Políticos, não tenho a mesma convicção de que a "certeza" jurídica propiciada pela decisão final do Poder Judiciário gere necessariamente uma decisão "justa". Será, é bem verdade, a decisão que ofertará a certeza sobre o direito aplicável, o qual poderá não ser o mais justo, seja por insuficiência técnica ou ética dos julgadores, seja por força de uma produção normativa defeituosa do Legislativo, que terminará por limitar a prestação judicial do julgador. O que me parece, todavia, pacífico, é que a "certeza" da jurisprudência é mais "justa" que a "segurança" da lei e nisto não conflito com o eminente autor. Em que pesem as poucas divergências, as convergências são incomensuravelmente maiores, em nossos pontos de vista, razão pela qual é, com alegria e honra, que, de forma perfunctória, apresento o livro de um dos jus filósofos mais respeitados do país, obra que, certamente, terá seu lugar bibliográfico assegurado nas questões da dogmática jurídica, à luz da veiculação processual, mormente em face de sua concepção jus naturalista de formatação aquiniana. Congratulo-me com a Editora, com o autor e com o público leitor pelo surgimento, no direito pátrio, de obra de tal envergadura, sobre temática que de há muito esperava alguém que a abordasse.

Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi Titular de Direito Constitucional e Económico

Introdução

SUMÁRIO: 1. Qual a natureza da Segurança Jurídica. 2. Que objetivos se pretende alcançar. 3. Os trabalhos doutrinários mais importantes. 4. Doutrina utilizada.

A Constituição Brasileira de 1988 instituiu "um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias" (Preâmbulo). Introduzindo o longo capítulo sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, o artigo 59 reconhece como invioláveis e garante a todos os cidadãos o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, que são, fundamentalmente, direitos naturais inerentes à existência da pessoa humana em sociedade. Note-se que liberdade, igualdade e segurança são reiteradas como fundamentos principais da Carta Constitucional, demonstrando a relevância dada pela Constituinte a esses valores. Numa época em que "crise" é a palavra-chave para a economia, para as relações sociais, a saúde, a educação e as instituições democráticas, também o é para o Direito. Crise do Direito ou crise da Justiça é a base da insegurança jurídica das nações em desenvolvimento. Apresentando-se o Brasil, no passado recente, como um dos países de maior inflação monetária, não havia estabilidade, mas insegurança nas relações económicas, com grave reflexo na vida patrimonial dos cidadãos, no seu poder aquisitivo e na situação de bem-estar da população. O tema da Segurança Jurídica sempre foi objeto de estudo da doutrina, mas nos tempos de crise, a instabilidade das instituições e das relações humanas exige novas reflexões para encontrarmos fórmulas objetivas de uma Justiça que restabeleça o equilíbrio social. Segurança e Justiça, à sua vez, são valores que se completam e se fundamentam reciprocamente: não há Justiça materialmente eficaz se não for "assegurado" aos cidadãos, concretamente, o direito de ser reconhecido a "cada um o que é seu", aquilo que, por ser justo, lhe compete. Em realidade, os valores fundamentais prenunciados no preâmbulo da Constituição Federal e, mais adiante, explicitados, não constituem um elenco hierarquizado, em que os primeiros sejam prevalentes aos demais, mas devem ser acatados como um conjunto ou complexo de valores que se inter-relacionam e se completam. De tal forma, não cabe falar em liberdade, v.g., sem que haja Justiça e Segurança; vejam-se as garantias dos direitos individuais do art. 59: ser "obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (inc. II); a "livre manifestação do pensamento" (inc. IV); a "liberdade de consciência e de crença" (inc.VI); a "livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação" (inc. IX); "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão" (inc. XIII); "é livre a locomoção no território nacional" (inc. XV); "é plena a liberdade de associação para fins lícitos" (inc. XVII) etc. Pelas mesmas razões não podemos tratar da igualdade, que é, juntamente com a alteridade e o débito, um dos elementos da Justiça clássica, aristotélico-tomista, sem estar necessariamente assegurada pela Lei ou pelo Judiciário: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações" (inc. I); "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (inc. XLI); "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível" (inc. XLII); "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (inc. LIN); "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (inc. LIV) etc. As medidas cautelares, em geral, a concessão de liminares pelos Juízes, em particular, bem como as medidas de amparo judicial (mandado de segurança, de injunção, habeas-corpus, habeas-data) caracterizam, pelo próprio nome, instrumentos eficazes para garantir a segurança de direitos subjetivos ofendidos ou ameaçados de ilegalidade ou abuso de poder, por autoridades ou agentes do Poder Público (incisos LXVIII, LXIX, LXXI, LXXII, do art. 59). Entretanto, o valor segurança é proeminente no direito de propriedade e a Constituição reforçou as declarações anteriores ao garantir "o direito de propriedade", atendida sua "função social" e assegurar, na desapropriação, a "justa e prévia indenização" (incisos XXII, XXIII e XIV), a proteção à pequena propriedade rural (inc. XXVI); e ao garantir a propriedade intelectual (incs. XXVII, XXVIII, XXIX) e o direito de herança (inc. XXX).

Todos estes temas e problemas não podem ser entendidos nem solucionados sem referência à Segurança Jurídica como valor fundamental das sociedades democráticas atuais. Nosso trabalho objetiva rever o conceito de Segurança como relevante ao Estado de Direito, e sua significação no sistema democrático, mas levando a reconsiderar sua relação intrínseca com outros valores, especialmente a Justiça, em sua democrática função social.

  1. Os trabalhos doutrinários mais importantes Muito embora no campo dos estudos de Teoria e Filosofia do Direito poucas sejam as pesquisas específicas sobre o tema Segurança-Jurisprudência, o enfoque contemporâneo sobre Segurança Jurídica tomou vulto a partir do pós-guerra, sobretudo com o ressurgimento do Direito natural, as exaustivas investigações sobre os direitos humanos, garantias e liberdades individuais e os estudos constitucionalistas a respeito dos princípios e garantias fundamentais.

Antes de 1945, o Juiz guiava-se pelo Direito legal ("Gezetses-recht'), objetivando concretizar a Segurança jurídica da Lei; após o restabelecimento do Estado de Direito nos países europeus, os Juízes passam a buscar a Justiça através do Direito judicial ("Richter-recht'); ilustra bem esta "virada conceituai" as posições de Gustav Radbruch: após a Segunda Guerra, a dramática experiência do nazismo, que colocou a magistratura alemã diante do impasse de aplicar uma legislação injusta, levou o ilustre filósofo a uma revisão de suas teses, defensoras da Segurança jurídica, passando a eximir os Juízes do dever de aplicar aquelas "leis que não são Direito", quando manifesta sua injustiça.' ) Trata-se de dois temas abrangentes: de um lado Segurança Jurídica e a correlativa Certeza do Direito; de outro, a Jurisprudência. O primeiro é estudado em função do seguinte, para o qual converge especificamente a finalidade desta análise.