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ÉTICA NO SERVIÇO PÚBLICO E EXERCÍCIO DA CIDADANIA

por Carlos Aurélio Mota de Souza. Original: pós 1960. em 5/11/2021

ÉTICA NO SERVIÇO PÚBLICO E EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Introdução: A Constituição Federal e o exercício da cidadania

Quando a Constituição vigente garante às pessoas residentes no país direitos fundamentais como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, não só prescreve quais são estes direi tos , em 77 incisos subsequentes, como é seu dever possibilitar a qualquer cidadão recorrer aos órgãos públicos para exigir aquelas prestações, concretamente, passando da era das promessas constitucionais para o exercício pleno da cidadania.

1 . A superação do conceito de serviço público tradicional

Ora, imaginemos um cidadão comum que procure trabalho, habitação, escola, saúde, segurança, previdência social, lazer etc. (art. 6 o da C. F) terá que bater as portas de várias repartições públicas, municipais , estaduais ou federais, que atuam, em nome do Estado, mas através de outros cidadãos, os servidores públicos, investidos de função estatal, vale dizer, poderes de ação.

De um lado do guichê ou do balcão está a grande massa dos cidadãos, sobretudo os que procuram seus direitos pessoalmente, não por meio de procuradores, e de outro, os funcionários públicos. Se da parte do publico é cansativa a espera em longas filas para cada um ver seu direi to pessoal atendido, do repetidas vezes outro também é exasperante ouvir repetidas vezes os mesmos pedidos e lamúrias.

A burocracia ainda é um sistema obsoleto em nossos serviços públicos, entretanto, muitos pedidos e reclamações já se atendem por telefone: há serviços a domicílio ou pelo correio, a exemplo da emissão de passaportes ou identidade e pedidos de aposentadoria; os pagamentos de pensões do INSS, através de cartões magnéticos j á evoluiu bastante. Um sistema burocrático emperrado, entretanto, ajuda a acirrar com toda a evidência, as tensões entre o público e os servidores.

Até bem pouco, e mesmo em nossos dias, o servidor público protótipo ou paradigma era aquele que encarnava a filosofia de sua repartição e do Estado; sua fidelidade interna era para com a hierarquia a que estava subordinado (chefes, diretores, superintendentes …) e essa filosofia era defender o Estado e ocultar informações contra toda tentativa de lesar, iludir, enganar ou aproveitar-se de alguém, indevidamente, dos serviços públicos.

A própria noção de "taxas de expediente" parece vir desse antigo costume. Se o particular deseja ou necessita de uma prestação de serviço deve pagar por ela. A idéia de imposto - que todos pagam para manter os serviços públicos em geral - parece não suficiente: há que cobrar algo mais, em determinadas circunstâncias, ainda que isso possa parecer indevido.

Este era o figurino do servidor fiel ao Estado (à burocracia) e à filosofia de superestrutura da sociedade, o qual deveria cultuar, por assim dizer, a hierarquia e os regulamentos.

2 . A oportunidade para o exercício dos direi tos e garantias individuais e sociais.

A grande abertura democrática 80, consolidada na Constituição de 88, fase revisional, trouxe regras que ultrapassar esta concepção de serviço e de público.

dos anos e ainda em permitem servidor

o que avulta nesta Carta não é mais o Estado, mas a sociedade e os cidadãos, que devem ser respeitados em suas necessidades, estes para poderem exercer plenamente sua cidadania. O objetivo primordial dos serviços públicos e, portanto, de seus agentes, é prestar assistência efetiva e concreta às reivindicações legais e exigências individuais ou coletivas dos cidadãos em geral.

Os serviços públicos devem se tornar, portanto, canais de realização dos direitos da pessoa humana, o exercício da cidadania - entendida não apenas no sentido político-eleitoral, mas numa visão globalizante dos direitos da pessoa humana - e não mais e apenas veículos de realização do Estado burocrático.

Resgatam-se com isso, o autêntico sentido da expressão "servidor público", como aquele que serve, que presta assistência, que despacha , que auxilia, que encaminha , que ajuda o homem comum, sobretudo o cidadão carente ( e todos sempre temos uma carência de poderes frente ao grande Poder Público … ), a realizar-se plenamente como pessoa humana.

Enfim, independente de nossa posição social, sempre temos um déficit de direi tos a face do Poder estatal; ou seja, o Estado sempre tem um debitum de justiça social perante seus cidadãos e a forma privilegiada de resgatá-lo será através de

Prestação, eticamente correta, de bons serviços públicos.

Esta é a reciproca da questão: se ao Estado - e aos servidores públicos compete a oferta de bons serviços em benefício comum da coletividade, aos cidadãos cabe o direito de exigir o adimplemento desse débito, seja individualmente ou coletivamente, através do justo atendimento nos di versos serviços públicos.

3 . Moralidade pública ou moralidade do servidor público?

Está inscrito na Constituição Federal que "a administração pública …. de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, etc … " (art. 37).

A partir dessa conceituação constitucional, verifica-se que moralidade é uma característica e dever inerente ao Estado e, em conseqüência, de seus diversos servidores públicos.

Vale dizer, compete ao Governo custodiar, garantir, assegurar à sociedade que seus atos oficiais estão revestidos de princípios morais, ou seja, clareza, visibilidade, decoro e respeito nos relacionamentos com os entes individuais.

Em decorrência, os agentes dos serviços públicos deverão, sempre, pautar sua conduta funcional pelos mesmos princípios exarados na Constituição; o funcionário público não pode agir diferentemente da conduta exigida ao Estado.

Portanto, se de um lado não se pode entender a organização de um Estado prevaricador, porque não está constituído como um ser vivo, portador de uma dignidade semelhante à do homem, de outro é lembrarmos que o agir estatal é exercido por pessoas humanas, com vontade, inteligência e liberdade, capazes de atuar segundo virtudes públicas exigidas pela lei e pelos costumes, mas também sujeitos à corrupção, ativa ou passivamente.

Daí que a moralidade institucionalizada pela lei ou regulamentos há de ser vivenciada concretamente em cada ato funcional praticado pelos agentes em nome do Estado.

Reversamente, não poderá o Estado apresentar moralidade se os executores das atividades estatais não ostentarem conduta moral inatacável; em suma, embora inseri ta na Constituição, a moralidade pública só emerge e se explícita daí a transparência exigível através das ações moralmente corretas de seus funcionários, em cada setor de atividade.

  1. Conflito de interesses públicos e particulares:

Serviço público x Corrupção

Ora, os interesses públicos que devem coincidir com o bem comum, são aqueles igualmente balizados pela Constituição, ostentados em seu preâmbulo ("assegurar o exercício dos direi tos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos"), e explicitados como objetivos nas normas seguintes (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos: art. 3°, incs. I a IV).

Não existem, para o Estado, interesses exclusivamente particulares; estes são vistos coletivamente, corno solução de problemas tais corno a educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, os chamados direitos sociais (art. 6°ss.). Os governantes apenas traçam programas de preferência no atendimento dessas exigências sociais.

A eficácia dessas políticas administrativas dependerá, entretanto, não apenas de excelentes programas políticos, mas fundamentalmente da eficiência das "maquinas administrativas", pilotadas por cidadãos investidos do múnus funcional de agentes do Estado.

A estes compete, essencialmente, revestirem-­se do interesse público, uniformemente, corno executores de urna ação governamental, independente da cor ou ideologia política prevalente.

No momento, porém, em que os cidadão agem, na administração da coisa pública, movidos por interesses particulares, seja egoísticos, seja partidários, ternos o fenômeno da corrupção.

Dá-se quando conseguir, a qualquer ou, se devidos, administrativos a que o cidadão comum intenta custo, benefícios indevidos dependem de procedimento se não querem submeter.

Surge, aí, o "jeitinho", tão brasileiro, mas não exclusivo nosso, de forçar o funcionário público a praticar, omitir ou retardar ato de ofício que lhe interessa, prometendo ou oferecendo vantagem indevida (corrupção ativa, art. 333 do Código Penal).

Ou, na modalidade inversa, o agente administrativo, para a prática de ato regular de sua obrigação, exige do cidadão vantagem indevida (concussão, art. 316 CP.) ou simplesmente solicita benefícios (corrupção passiva, art. 317).

Apenas para lembrar, os crimes contra a Administração pública ocupam longos capítulos do Código Penal (arts. 313 a 359), tão variadas são suas modalidades.

A corrupção, assim, é a face dos interesses egoísticos individuais contra os legítimos interesses públicos, entendidos como sociais ou coletivos

Conclusões: Necessidade servidor público e de baseados nos direitos pessoa humana.

de um código de uma cultura da fundamentais a ética do cidadania, serviço da pessoa humana.

De imediato, impõe-se a difusão de um Código de Ética para os servidores públicos, em todos os níveis administrativos da Federação, para se cumprir cabalmente o mandamento constitucional do art. 37[1], cujas sanções, de caráter moral e administrativo, sirvam à promoção funcional dos bons servidores e ao bloqueio do acesso a cargos de maior poder, aos prevaricadores.

Ao mesmo tempo, nenhum funcionário poderia ser admitido ao serviço público sem preparação técnica e formação moral, em que demonstre sua vocação para o exercício de cargos públicos, como função ou missão destinada a resgatar, respeitar, proteger e promover, em todos os graus e circunstâncias, a cidadania ameaçada ou ofendida.

Isto se dará a nível interno, pela educação e atuação integradas dentro dos vários escalões (como os centros de prevenção de acidentes, nas fábricas), numa reciclagem continuada através dos erros e acertos, ou externamente, através de instituições especializadas[2] .

Entretanto, a grande necessidade e premente urgência estão na educação regular para a cidadania consciente, tarefa única e exclusiva da escola regular, em todos seus graus, sobretudo universitários, de onde egressam os profissionais qualificados para as relevantes atividades sociais.

Se a educação para a cidadania implica em moralidade, a ética deve se tornar disciplina fundamental em todos os níveis de aprendizado, sempre adaptada à capacidade intelectual de cada discente.

Faltou durante muito tempo, em nossos sistemas educativos, a seriedade e a prática da moralidade e do civismo, apresentados como matéria teórica, de exigência tão somente curricular.

Impõe-se, pois, restaurar tais disciplinas com participação em todas as matérias, como objeto até mesmo nas ciências exatas, pois delas derivam outras tantas vocações específicas.

Haveria de se utilizar intensamente, outrossim, dos grandes meios de comunicação e as oportunidades de encontros de massa, como jogos e campeonatos esportivos, encontros artísticos e musicais, onde têm avultado manifestações de violência, depredações, dano ao meio ambiente e ao patrimônio público e privado, demonstrativas de alto grau de dissolução ética da sociedade, pelo desrespeito à dignidade das pessoas.

Trata-se de instituir uma educação permanente e difusa, ao mesmo tempo, em todas categorias de estudos, para que a nação brasileira seja empapada de civismo, moralidade, ética pessoal e social, base única para reconstrução de uma nação nova e uma nova humanidade, da qual sairão profissionais conscientes para o serviço à plena cidadania.

Carlos Aurélio Mota de Souza

Foi professor de Ética Profissional e Introdução à Ciência do Direito na Faculdade de História, Direi to e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (UNESP) , Campus de Franca (SP) . Da Magistratura paulista, aposentado. É membro do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil Seção de São Paulo. É Coordenador do Curso de Direito da Universidade de Mogi das Cruzes (SP).

[1] Em momento de elevada inspiração o Presidente Itamar Franco fez editar o De- ereto n° 1.171, de 22/06/94, instituindo o Código de Ética do Servidor Público Federal, cuja importãncia repercutiu favoravelmente em vários círculos culturais e administrativos, já revogado. Hoje estuda o governo uma nova regulamentação, pelo Ministério da Justiça.

[2] Em Brasília, é notável a contribuição da ENAP (Escola Nacional de Ad­ministração Pública) para a formação e capacitação funcional dos servido­res públicos em geral.

Autor(es)

Carlos Aurélio Mota de Souza