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Incidente de Martens (1907)

por Rui Barbosa. Publicado originalmente em 26/07/2018. em 5/7/2021

Incidente de Martens (1907)

Rui Barbosa

Uma memória?… e porque não um discurso? …

As palavras com que foi recebido o meu discurso parecem envolver uma censura, que não posso, que não devo deixar sem imediata resposta, porque tal censura, se houver, eu na verdade, não a mereci. Envelheci na vida parlamentar, em que lido há não menos de vinte cinco anos. Tenho a honra de presidir o Senado de um país, onde as instituições parlamentares contam mais de sessenta anos de existência. Devo portanto conhecer um pouco os deveres da tribuna nas assembléias deliberativas e seria incapaz de transgredi-los.

Que fiz eu realmente? Quis levantar os debates um pouco acima das suas minúcias, encarando seu aspecto geral, isto é, as suas relações com o espírito de pacificação e com o espírito de civilização da guerra, que nos devem inspirar e conduzir. Nessa ordem de idéias invoquei a escola segundo a qual há, senão identidade, ao menos certa aproximação entre o emprego dos navios mercantes como navios de guerra e o corso, há tanto abolido.

Para estabelecer minha tese recorri a nomes irrecusáveis como os de Philimore, de Bluntschli, de Hall, de Funck-Brentano, e mencionei fatos históricos discutidos nas obras de direito internacional tais como o ato do governo de Berlim durante a guerra franco-prussiana, chamando a vossa atenção sobre o que pensavam aqueles autores. Em tudo isso eu tinha em vista, e eu mesmo o acentuei, avivar bem a esta assembléia a delicadeza da questão e mostrar os perigos de se não tomarem todas as precauções para que o corso se não se restabeleça debaixo de um pseudônimo.

Fazendo tais considerações trilharia eu porventura caminho proibido? É evidente que não. Pelo contrário, elas deviam ser necessariamente a fase inicial desse debate, uma vez que para formarmos opinião sobre os pormenores era preciso primeiro conhecer a natureza, a índole, e o resultado da instituição que se pensa em consagrar.

É exato que aludi à política, mas incidentemente, muito incidentemente e justamente para dizer que nos era interdita. Prová-lo-á, com a mais absoluta autenticidade, o próprio texto do meu discurso que será publicado pelos srs. secretários, sem que eu o corrija. Diante disso era justo acolher o meu discurso com a solene advertência de que a política nos era defesa, dando a entender que eu havia violado essa regra?

Mas, uma vez que ela se formula nos termos absolutos que acabamos de ouvir, é preciso examiná-la. É ela verdadeira? é ela real, na amplitude que se lhe quer conferir? Não. Seguramente não. É certo que a política não é da nossa alçada, é certo que não podemos fazer política, é certo que a política não é o objeto do nosso programa. Mas este poderíamos porventura cumpri-lo, se estabelecêssemos uma muralha entre nós e a política, entendida, como é preciso entendê-la aqui, no sentido geral, no sentido superior, no sentido neutro do vocabulário? Não.

Não esquecemos que o imperador da Rússia, no seu ato de Convocação desta conferência excluiu, peremptoriamente do seu programa, as questões políticas. Mas essa exclusão é evidente que não visava senão a política militante, a política de ação e de combate, a que perturba, que agita, que separa os povos nas suas relações internas e nas suas relações internacionais. Não podia ter em mira a política encarada como ciência, a política estudada como história, a política explorada como regra moral. Porque, desde que se trata de fazer leis, domésticas ou internacionais, para as nações é mister logo de início examinar, diante de cada projeto, a possibilidade, a necessidade, a utilidade da medida, ante a tradição e ante a atualidade dos sentimentos e das idéias que animam os povos e regem e os governos. Poderá alguém dizer que isso tudo não é política?

A política, no sentido mais vulgar da palavra, esta, ninguém pensa em contestá-lo, esta nos é de todo em todo verdade. Nada temos que ver com as questões dos estados, internas ou externas, com os casos que dividem as nações, litígios de amor-próprio, de ambição ou de honra, dissídios de influência e predomínio que conduzem ao conflito e à guerra.

Mas na outra, na grande acepção da palavra, na mais alta e não a menos prática, que significa os interesses supremos das nações entre si, poderia a política nos ser defesa? Não meus senhores.


Haverá debaixo do céu algo de mais eminentemente político do que a soberania? Haverá nada de mais ousadamente político do que traçar-lhe limites? Organizando com o arbitramento obrigatório uma barreira contra o arbítrio das soberanias não está a conferência fazendo a mais manifesta e mais franca das políticas? Entidades absolutamente políticas, as soberanias representadas nesta conferência abdicariam parte da sua independência nas mãos de um tribunal, comprometendo-se a submeter-Ihe certos litígios. Haverá nada, meus senhores, de mais caracteristicamente político ?

NOTA

(12 de julho de 1907) Haya. Conferêrncia da Paz.

Durante a estada entre nós do grande internacionalista norte-americano Brown Scott, a seu pedido, descrevi longamente no “O Jornal" esse fato que foi um momento decisivo da carreira de Ruy Barbosa no Parlamento das Nações. Pensava Brown Scott que o meu testemunho se completaria pelo dele e que ambos são historicamente indispensáveis.

Ruy discorrera na Quarta Comissão sobre a transformação dos Navios Mercantes em Navios de Guerra. Tendo o Brasil assinado a Declaração de Paris era natural a sua intervenção no debate, em que aludiu a fatos que se passaram quer na Guerra Franco-Prussiana, quer na Russo-Japonesa. Concluía que essa transformação podia redundar na consagração legal do corso. Era portanto preciso cercá-la das garantias as mais estritas. De Martens ao terminar Ruy a sua dissertação, declarou: "A memória do nobre delegado do Brasil constará dos nossos processos verbais. Devo porém, observar-lhe que a política não é da alçada da conferencia". Ruy imediatamente deu-lhe a resposta que se seguiu, onde pela primeira vez se faz a distinção entre a política proscripta dos debates e a que era especificamente inerente à exploração dum concílio de internacionalistas. Desse discurso data a consagração de Ruy como a figura central da conferência.

BARBOSA, Rui. Organizada, anotada por FERREIRA, Baptista. Coletânia Literária. São Paulo, Editora Nacional, pp. 213-217.